23/03/2011

A ética no meio esportivo

Nos últimos anos, temos visto vários comportamentos que mostram uma ética frágil e a falta de cultura esportiva no Brasil.

Em relação ao futebol, nos dois últimos Campeonatos Brasileiros houve até quem torcesse contra o próprio time, apenas para combater a torcida rival da cidade. Em 2009, torcedores do Grêmio pediram explicitamente para o time entregar o jogo final contra o Flamengo. Não desejavam que o rival gaúcho Internacional pudesse ser campeão. Nesse jogo, o Grêmio jogou com o time de reservas e o Flamengo se sagrou Campeão ao vencê-lo por 2 a 1.


No último Campeonato Brasileiro, a torcida são-paulina levou faixas com a palavra "Entrega" para Barueri, o­nde o time recebeu o Fluminense. Como um triunfo da equipe carioca prejudicaria o Corinthians, rival são-paulino ainda com chances de título, parte da torcida da equipe do Morumbi comemorou os gols do rival, que venceu por 4 a 1. O mesmo aconteceu no jogo com o Palmeiras, outro arquirrival corintiano.


Esse comportamento mostra que nós, brasileiros, confundimos ética com vantagem, ou seja, a pessoa torce para o que ela acha mais vantajoso para ela.

Agora, em janeiro, o pentacampeão Rivaldo, aos 38 anos, foi contratado para ser jogador do São Paulo, e continuou na presidência do clube de futebol Mogi Mirim. Há um exercício de função em que o conflito de interesses é gritante. São duas funções incompatíveis. Como se comportará o jogador em um jogo do São Paulo contra Mogi? Por mais que seja um grande profissional, a exclusividade é o caminho mais ético, mais transparente.


Mas isso não ocorre só no futebol...


Felipe Massa e a Ferrari foram criticados quando o brasileiro acatou ordens de sua equipe e deixou Fernando Alonso ultrapassá-lo no GP da Alemanha, em julho de 2010. Muitos condenaram o Felipe Massa mas, se fosse o espanhol que tivesse deixado o brasileiro passar, será que isso incomodaria alguém? O que se observa é que o torcedor apoia a marmelada* que favorece o seu próprio interesse. Quando o resultado lhe convém, ele endossa, mesmo que seja uma atitude considerada imoral. O que está em jogo é a paixão. A ética é totalmente esquecida nessa hora.


Aos olhos dos milhões de espectadores que acompanham as corridas no mundo inteiro, a credibilidade da competição fica ferida, desacreditada. As pessoas que gostam do esporte entendem que em qualquer modalidade, a vitória, o empate ou a derrota devem ser definidos dentro de uma disputa justa, limpa, irretocável, sem intromissões alheias, sem que interesses de terceiros (ainda que sejam as escuderias, equipes ou times envolvidos) sejam os motivadores do ocorrido.

A competição deve estar acima dos milhões de dólares que movimentam as modalidades. Se o doping é abominável em competições de atletismo ou natação, se juízes que recebem propina para ajudar uma equipe a vencer no futebol constituem ato igualmente impróprio e imoral, a intromissão das escuderias de Fórmula 1 (ou de qualquer outra categoria do automobilismo mundial) é, também, uma ação indevida, desqualificada, antiética e totalmente imprópria para a prática esportiva.

A natureza do esporte tem como base primordial a competição. A cooperação dentro de uma mesma equipe deve acontecer, mas os limites desta ação de trabalho e auxílio terminam quando começam as disputas, os jogos, as corridas. Dentro das arenas esportivas, ainda que colegas de um mesmo time, cabe a cada atleta procurar a vitória sobre os demais competidores, sejam eles de sua própria equipe ou não.

Felipe Massa, que aos olhos de muitos pode ser visto como vítima desta farsa que se estabeleceu na Fórmula 1 - situação que infelizmente já aconteceu em outros momentos -, acatou as ordens e deixou Alonso passar. E se tivesse resolvido seguir adiante, mantendo a posição conquistada na pista, sofreria sanções da equipe? Seria repreendido pelos diretores? Teria multas aplicadas e descontos em seu salário? Mas sua atitude seria considerada de qual forma pela opinião pública? Prova de força, de coragem e de competitividade? Ou como insubordinação, motim e irresponsabilidade perante a equipe?

A ética no esporte prevê a disputa limpa, sem intromissões que prejudiquem o desenrolar da competição. Em 2008, a Renault, seu diretor Flávio Briatore e o piloto Nelsinho Piquet foram condenados pela Federação Internacional de Automobilismo (FIA) por um acidente com o piloto brasileiro. Acidente forjado durante prova do campeonato mundial de Fórmula 1 daquele ano, criado para beneficiar o colega de equipe de Piquet, que estava na disputa pelo primeiro lugar na prova e no campeonato de pilotos. As ações deste GP da Alemanha de 2010 são igualmente condenáveis, pois se revelam antiéticas como as daquela situação. Ironias à parte, o beneficiário do acidente de Piquet foi também Fernando Alonso...

É claro que em 2008, no caso Piquet, há agravantes, como a simulação previamente planejada de um acidente com o piloto brasileiro. Mas agora, em 2010, com regulamento claro que impede qualquer equipe de pedir ou "orientar" seus pilotos a fazer o tal jogo de equipe, a atitude foi igualmente premeditada e pensada nos boxes da Ferrari e fere a dignidade dos pilotos, da equipe, da categoria e do esporte. Situações como esta levam os fãs da F1 a duvidarem da credibilidade do que está sendo visto...

Para se ter noção de como a ética é colocada de lado, em detrimento da parte financeira, o Conselho Mundial da FIA ( Federação Internacional de Automobilismo ), reunido no dia 10 de dezembro de 2010, decidiu suprimir de seu código o artigo que, na teoria, vetava as marmeladas*, o 'jogo de equipe'.


Outra atitude que esbarra na ética foi a da nossa seleção masculina de vôlei, que, no Mundial da Itália, jogou com reservas contra a Bulgária, perdeu e evitou uma trajetória mais difícil até a final. Enquanto para alguns o time fez parte de uma marmelada*, para outros, Bernadinho e os atletas tiveram uma atitude racional, uma vez que o regulamento do campeonato prejudicava as seleções de melhor campanha. Houve - e ainda há - inúmeras declarações de apoio àquela derrota, pois se o Brasil ganhasse da Bulgária, mas não chegasse à final, poderia dar a ideia de ser um time ingênuo, que caiu na armadilha do regulamento italiano.


Vale reforçar que esses arranjos no esporte por vezes são aceitos, e até desejados, porque o Brasil não ostenta uma cultura esportiva sólida. A torcida é para que o fato de o Brasil sediar a Copa de 2014 e a Olimpíada de 2016 alavanque o processo de sedimentação dessa cultura esportiva, dessa ética. É muito importante ensinar a população a torcer eticamente, educar para o esporte.

Na virada do século XIX para o XX, tivemos o célebre ensinamento do Barão de Coubertin, responsável pelo surgimento das Olimpíadas Modernas, que dizia que "O importante é competir". Esperamos que este ensinamento, que tem sido substituído por "O importante é vencer", ainda mais neste século XXI, no qual há milhões de motivos (a serem depositados em contas bancárias) para que as vitórias aconteçam, não se deixe deturpar e que os líderes e as pessoas analisem a real função do esporte.

Para concluir, reproduzo abaixo os depoimentos de dois grandes campeões profissionais, abordando a questão da ética no esporte:



"Num mundo cada vez mais profissional e competitivo, o­nde o resultado se torna fator de sobrevivência, o assunto ÉTICA é cada vez mais discutido, mesmo nos meios em que, historicamente, isso deveria ser uma regra. O esporte é um destes meios, com inúmeros casos que geram discussões sobre o tema.

Quem não se lembra dos célebres casos de Senna e Prost e agora, mais recentemente, dos jogos de equipe da Ferrari, na Fórmula 1?

Quantos casos de doping têm sido vistos ao longo do tempo, principalmente em Olimpíadas, o­nde o tão festejado espírito olímpico deveria prevalecer?

No futebol, volta e meia somos bombardeados com notícias sobre 'corpo mole' de alguns times e as tais 'malas pretas e brancas'.

Até num esporte que sempre foi referência de correção na conduta, que é o vôlei (infelizmente tenho que falar isso sobre o meu esporte), vimos recentemente um Campeonato Mundial cheio de resultados estranhos, inclusive o já famoso jogo do Brasil contra a Bulgária, em que a nossa seleção entregou o jogo para se beneficiar, entrando em uma chave melhor na fase seguinte.

Enfim, temos inúmeros casos que demonstram que os interesses comerciais estão à frente da ética e do tão celebrado espírito esportivo ou espírito olímpico. O ideal olímpico do Barão de Coubertin, que dizia que o importante não é ganhar e sim competir, já ficou pra trás há muito tempo...

Sinceramente, torço para que aconteçam mais exemplos como o da Red Bull na Fórmula 1, que foi campeã mundial de equipes e pilotos sem jogo de equipe, inclusive co m uma ordem do dono da empresa que rechaçou qualquer possibilidade disso ocorrer. Desta maneira, poderemos ver o esporte repleto de bons exemplos.

Nós, pessoas do esporte, temos a obrigação de lutar pela ética, para que possamos continuar a ter a prática esportiva como instrumento de inclusão social e fonte de bons princípios e valores para nossas crianças, que crescerão cheias de saúde e bons exemplos a seguir.

Essa é a torcida de alguém que descobriu o esporte aos 10 anos de idade, competiu durante 25 anos, e NUNCA precisou de qualquer tipo de artifício que ferisse a ética no esporte para ser competitivo e conquistar um espaço de destaque." (Nalbert)


"Todo esporte precisa de ética. E o que é isso? Significa começar pela primeira premissa do esporte: nunca perder de propósito, mesmo que seja para ter um melhor resultado ou cruzamento na frente. Feliz 2011 para vocês com muita ética na 'vida'." (Oscar Schmidt)


* "Marmelada de banana, bananada de goiabada, goiabada de marmelo" – trecho da famosa música de Gilberto Gil - Tal qual acontece nessa música, em que a marmelada não é de marmelo, nas fábricas de conservas, várias vezes a marmelada é de chuchu com marmelo. O chuchu é acrescentado de forma ilegítima no doce. Daí vem o uso de marmelada com o sentido de um 'arranjo' de participantes de uma competição.

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